Blog Ilton Muller

Boate Kiss: julgamento marcado

Morreram 242 pessoas e outras 636 ficaram feridas

 Era para ter acontecido ano passado, mas, por força da inesperada pandemia, o julgamento dos réus do mundialmente conhecido “caso Boate Kiss” foi marcado para o próximo 1º de dezembro. Fim do ano, também em razão da pandemia que ainda não acabou.
Tanto tempo depois do incêndio, ocorrido em 27 de janeiro de 2013, vale lembrar que são quatro réus: Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Londero Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão. Os dois primeiros eram sócios e proprietários da boate. Os demais, integrantes do grupo que se apresentava na fatídica noite.
Obviamente, ninguém se esqueceu da tragédia, mas, tanto tempo depois, com a enxurrada de notícias desagradáveis que dia-a-dia nos assola, é natural um certo arrefecimento de ânimos, assim como o esquecimento sobre alguns detalhes do ocorrido.
Morreram 242 pessoas e outras 636 ficaram feridas. Os réus devem responder, então, por 242 homicídios consumados e 636 tentados. O Código Penal pune o homicídio com 6 a 20 anos de reclusão. A tentativa pode reduzir a pena de um a dois terços (quanto mais próximo da consumação, menor a redução).
Uma série de fatores pode ter contribuído para tanta demora. Penso que um pouco se deve à natural e conhecida lentidão que caracteriza o sistema judicial. Outro tanto se deve, certamente, à complexidade do caso, dada a quantidade elevadíssima de testemunhas e vítimas. Muitas delas foram ouvidas em comarcas distantes de Santa Maria e algumas até mesmo fora do Estado. 
Além disso, também fugindo do usual, houve um pedido de desaforamento, ou seja, para que o julgamento não ocorresse em Santa Maria, evitando o clamor da comunidade diretamente atingida. Esse pedido foi acolhido pela Justiça e o Júri foi transferido para Porto Alegre.
Não creio que o desaforamento fará tanta diferença, porque um caso dessa repercussão, se fosse julgado em Gramado, na Patagônia ou em Marte, certamente teria o mesmo desfecho. Esse poderia ter sido um fundamento para se manter o Júri em Santa Maria – mas não foi assim. E serviu para protelar, ainda mais, o esperado julgamento.
Outra parcela se deve ao procedimento que os processos de Júri seguem. Diferentemente da maioria dos casos, os processos de Júri passam por uma primeira fase que objetiva definir justamente se é caso de Júri – basicamente, se é um crime doloso contra a vida.
Assim, a depender da complexidade do caso e do número de recursos utilizados pelas partes ao longo dessa primeira fase, o julgamento demorará a ocorrer, ainda mais em se tratando de réus que respondem em liberdade.
Muitas vezes é fácil identificar o dolo. Quando o réu, por exemplo, dispara uma arma de fogo em direção à vítima ou lhe desfere um golpe de faca, em região letal. Porque, nessas situações mais comuns, sabe-se que ele desejava a morte da vítima. Chama-se dolo direto.
No caso da Kiss, discute-se o chamado dolo eventual, quando o réu não deseja a morte, mas age com indiferença. Ele percebe a provável morte da vítima e assume o risco de que ela ocorra. Há um bom exemplo para compreender o dolo eventual: a roleta-russa. Alguém coloca uma única bala no tambor do revólver, gira-o, aponta para a cabeça de outra pessoa e aciona o gatilho. 
Porém, nem sempre é fácil identificar o dolo eventual.
No “Caso Kiss”, toda a controvérsia judicial, desde o início, gira em torno sobre a caracterização ou não de um crime doloso contra a vida (homicídio com dolo eventual). Logo, pode-se imaginar quão tumultuada foi essa primeira fase.
Segundo a acusação, no interior da boate usaram fogos de artifício de uso externo. E o ambiente interno era composto por madeira, cortinas e uma espuma inflamável e tóxica.
Ainda, a boate estava superlotada e sem saídas alternativas. As pessoas entravam e saíam pela mesma porta, sendo que, para deixarem o local, precisavam passar por guarda-corpos. No início do incêndio, a saída de clientes não foi permitida sem a comprovação de pagamento das comandas, e os funcionários da boate não eram treinados para situações de emergência, estando os exaustores obstruídos.
Segundo a defesa, não pode ter havido dolo eventual, entre outras teses, porque um dos réus estava dentro da boate, acompanhado de sua esposa, grávida. Logo, não se pode conceber a assunção do risco de morte. 
Essas e outras ponderações serão exaustivamente discutidas a partir de 1º de dezembro. Ao final dos debates – o que levará alguns dias –, talvez o principal quesito a ser respondido pelos sete Jurados será o referente ao dolo eventual. Porque, se o afastarem, restará a possibilidade de condenação apenas por culpa. Aí, a pena do homicídio reduz drasticamente: 1 a 3 anos de detenção.
Resta esperar que o julgamento venha mesmo a ocorrer na data recém anunciada, para que haja, pelo menos, uma definição jurídica sobre essa tragédia, o que certamente repercutirá por todo o mundo, seja qual for o veredicto.

Tags:Coluna Emerson Pinheiro; Opinião

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